Mea culpa (ou Em 2010, em também não fui ao Teatro...)

"Uma ação violenta e densa é uma similitude do lirismo..."

(Antonin Artaud)

Certa vez, li em um desses manifestos estéticos auto-destrutivos que não há “diferença entre onanismo e necrofilia”... Uma das maiores tolices que alguém já pode ter escrito. O prazer consigo mesmo é um prazer com vida, da vida, para a vida. Mesmo o mais neófito dos adolescentes em suas primeiras experiências masturbatórias pode constatar que o corpo vivo não se limita ao organismo, e que a energia sensual que vem do cérebro, além de satisfazer as necessidades hedonistas do próprio corpo, na verdade, almeja um outro corpo, em seus desdobramentos do desejo imaginado, mesmo que não materializado.

Tenho procurado trilhar um percurso nessa fortaleza de nossa senhora que me possibilite cruzar caminhos. Não me interessam nem os becos sem-saída nem os atalhos sem-lobo-mau. Busco a beleza, a efemeridade e o risco do encontro. Talvez por isso, já há algum tempo, deixei de frequentar o Teatro. As experiências que tive, em minha assiduidade preguiçosa, me lograram frustrações desanimadoras.

Abandonei o Teatro, mas não fui eu que o matei – juro! Ele tem se mostrado um daqueles suicidas chatos e mimados que não morrem nunca, que só querem chamar a atenção, e que nos inspiram uma enfadonha comiseração. Deixei o Teatro e me perdi pelas ruas, pelos cabarés, pelos bares, pelas feiras, em busca de burburinho e espontaneidade. Me cansei da arte ensaiada, ilusionista e sem um pingo de tesão pela vida.

Meio cabisbaixo, desacreditado, buscando musicalidade e companheirismo em chutes de latas e cachorros de rua, eis que me deparo com uma movimentação diferenciada na curva de uma esquina repleta de histórias e dragões. Um príncipe-mendigo extrai suas palavras de dentro de uma lata de lixo e ameaça a todos de deixar nossas máscaras em farrapos.

Topo a idéia, compro uma cerveja e a derramo no peito de um michê gostoso que passou se insinuando. Lambo seu mamilo com a intensidade e prazer da esgrima desavisada no miserável Polonius atrás da cortina. É preciso tomar uma atitude, mesmo que ela nos custe alguma vida – e não seria isso, a vida?! Entro na festa...

(Soube que a cantada desse michê havia abalado as convicções profundas de alguns transeuntes. Senti uma mescla de ciúme e cumplicidade: uma ação violenta e densa é uma similitude do lirismo. Todo mundo parece querer convencer alguém de alguma coisa. E, não houvesse a brutalidade oficial e moralista, esse michê sequer existiria para alegrar minhas noites.)

Continuei meu caminho, já quase chapado daquela música repetitiva. A rave é um dos momentos de transe coletivo mais intrigantes da contemporaneidade. Mas eu precisava trilhar essa trajetória solitária, me desapegando de tudo que criasse significados instantâneos.

Me lembrei de um chope de vinho bizarro na outra esquina. O racionalismo germânico jamais imaginaria transbordar no mediterrâneo dionisíaco de uma taça do bixiga. Nem eu. Mas o impulso de subir as escadas me parecia ir além da necessidade de me aliviar no banheiro. Ou melhor, o impulso era idêntico à força viva dessa necessidade básica.

Putas, viados, cafetões e uma galera mais curiosa do que outsider conviviam em meio a mesas quebradas, abajures foscos e desejos insanos. Aquela confusão cênica não me pareceu nada agradável e, por isso, permaneci. Em um canto mais afastado, cheio de garrafas vazias, ouvi Plínio sugerindo a William: “uma ação violenta e densa é uma similitude do lirismo”. Numa gargalhada de mestre, o inglês compactuou: I do agree! I do agree!!!

Antes do fim da cena – ou o que fosse aquilo: a vida? – os dois colegas saíram de fininho e eu os segui até um cine pornô no centro, onde a moral, confinada aos limites de um dark room, espancava corpos e espíritos. Imagens em um cinema não é nada redundante.

Mas a força da fome, que deve ser idêntica à vontade de fazer arte, me levou a procurar algum churrasquinho de gato nas proximidades. Já quase íntimo da dupla de colegas, os convidei a me acompanharem até a praça. Nossa fome desmaiou diante de um louco oferecendo churrasco em troca de que assistíssemos a um vídeo no qual animais eram abatidos, torturados e comercializados. “Somos aquilo que comemos?”, perguntou Plínio. “Essências de nós”, respondeu o cara. “Um exercício ético-religioso”, emendou William. Eu, já sem voz, me lembro de ter vomitado aos pés de uma travesti insana e mal acabada – havia fugido de uma fábrica, pois “lugar de travesti é na vida”, segundo suas próprias palavras. E eu, que havia pensado o mesmo do teatro, lhe ofereci uma bebida e, agora, éramos quatro – mas não é nada disso do que você está pensando (eu não podia perder a piada, né!). Três barbudos e uma trava perdidos (?) na noite suja...

Decidimos procurar um lugar mais reservado, embora a rua e a noite nos fossem duas amigas tão íntimas que já nem distinguíamos o dentro do fora. No caminho, nos deparamos com o cortejo fúnebre de um palhaço, seguido por uma banda de música e um séquito de outras tantas pessoas que, curiosamente, dançavam uma coreografia simétrica e divertida. A alegria parou o trânsito. O riso sobrepujou a morte e o automatismo...

Na entrada de um inferninho próximo, duas damas grotescas disputavam o espaço da esquina: uma depilava as pernas e as exibia languidamente aos passantes, lhes desafiando a libido asséptica; a outra, descabelada, abraçava uma garrafa de cachaça e repetia aos berros: Eu tenho Jesus! Eu tenho Jesus! William, sempre brincalhão, e com a mão já apalpando a bunda da traveca, concordou: I do too. I do too.

Gargalhada geral. Adentramos o bordel e passamos a noite inteira fazendo arte...

Na saída, topamos com um cara desenhando sonhos. Entre sonhos sonhados e sonhos desejados, no meio de uma manhã de cores e cheiros, sonhos presos no papel, porém livres pelo ar...

Ressaqueados e contentes, vislumbramos o ano de 2011...

(muita água em nossas cabeças;
muito sangue em nossas veias)

2 comentários:

Dan PachecoFigueiredo disse...

Quero seguir o blogue!
?

projeto cadaFalso disse...

massa, daniel! seja benvindo! abçs...