O riso é a marca do homem

(contribuição crítica ao espetáculo As bondosas)

Deus, que ao homem submeteu o mundo,
ao homem apenas concedeu o riso
para que se divertisse, e não às bestas
que não têm razão nem espírito nas cabeças.
(Ronsard)

Três carpideiras lamentam a morte de uma jovem aristocrata. A imagem triste das três junto ao caixão contrasta com o ambiente quase alegre do velório, propiciado pelos fuxicos dos convidados e pelo vai-e-vem das bandejas de café. Do contraste, surge o mote para a peça As Bondosas, de Ueliton Rocon, em cartaz no SESC Emiliano Queiroz,  todas quartas de setembro, às 20h.
No palco, os atores Alcântara Costa, Roberto Maur e o também diretor Ueliton Rocon interpretam, respectivamente, as carpideiras Angústia, Astúcia e Prudência. O recurso onomástico é bastante recorrente na Literatura e no Teatro. Neste caso, cada personagem “personifica” um sentimento ou um caráter supostamente universal do ser humano. Tais comportamentos, no entanto, entram em disputa, o que gera o principal conflito da história. Tudo leva a crer que teremos um drama denso e talvez trágico, mas a encenação pega-nos de surpresa ao investir no tratamento cômico das personagens e da direção.
Tratar de dramas dessa natureza, explorando as revelações mais íntimas de personagens densas e sisudas, não é novidade para a Cia. Lua de Teatro, que já encenou, tempos atrás, a peça estática O Marinheiro, de Fernando Pessoa. Não é à toa, aliás, que o diretor e ator Ueliton Rocon alcunha a atual montagem do grupo como O Anti-marinheiro, justificando que “há semelhanças estéticas entre os dois espetáculos. Enquanto que, em O Marinheiro, você tem as veladoras (que são personagens mais sisudos e filosóficos), em As Bondosas, você tem as carpideiras (que são personagens mais próximos do nosso imaginário)”.
É de se questionar, qual seria então o “nosso imaginário”. Ora, é evidente que o autor e os diretores apostaram no tradicional “jeito cearense de ser”, no riso, na molecagem, na carnavalização. Mas não seria mais prudente utilizar-se de um tom mais dramático, como fez Ziembinski na incompreendida Dorotéia, de Nelson Rodrigues – peça, por sinal, muito próxima d’As Bondosas, por sua temática e pela caracterização das personagens?
A resposta é negativa. Sobre Dorotéia, por exemplo, o próprio Nelson a classifica como uma farsa irresponsável em três atos. Talvez a montagem que melhor tenha se aproximado do gênero proposto pelo autor foi a protagonizada por Dercy Gonçalves (1958), no papel de uma Dorotéia debochada e – o que é de se esperar de Dercy – desbocada.
Apesar das inevitáveis comparações, As bondosas se diferencia em léguas da peça rodrigueana, justamente por adotar mais que explicitamente a veia cômica cearense de maneira bastante inteligente – o que não tem sido muito comum por aqui!
Há tanto o que dizer sobre a peça, que vou me restringir a apenas dois aspectos, por serem, a meu ver, os mais representativos. Um diz respeito à brincadeira – dialética sim, mas de uma dialética popular – entre o sagrado e o profano.
Até o século XVII,  o riso não era considerado uma forma de expressão superior, e não podia sequer ser utilizado universalmente, para todos os âmbitos da vida social. O que era tido como essencial e importante não podia ser transmitido através do riso. Com a chegada do pensamento renascentista e o conseqüente declínio da moral cristã medieval, todos se dão conta de que “o homem é o único ser vivente que ri”, como diz o clássico aforismo aristotélico. Rir tornou-se, então, atitude subversiva. O medo, a dor, o autoritarismo constituíam os tons da seriedade oficial, enquanto o riso trazia uma proposta de ruptura com os valores oficiais, manifestando a liberdade, a alegria e a fantasia.
Há um mito bastante representativo dessa dualidade. Nas festas medievais de comemoração da alternância das estações, o grande ícone era um Jano de duas faces: a oficial, religiosa, voltada para o passado, e a popular, risonha, que olhava para o futuro e ria-se do passado e do presente. Era esta que impedia a imutabilidade, o conservadorismo e propunha a alternância e a renovação.
Aqui chegamos em nosso segundo ponto, diretamente relacionado ao primeiro. As inversões de valores utilizadas ao longo de toda a peça reforçam o caráter subversivo do cômico. Opondo-se ao oficial, hierarquicamente superior, a comédia tende a valorizar o inferior, o que está embaixo, nos sentidos físico e moral.
O Céu é sério demais – zombemos dele. O Livro – espécie de arqui-símbolo dos textos de referência religiosos, a Bíblia, o Alcorão etc. – tem como propósito nos dar as respostas, para que não tomemos atitudes por nossa própria vontade. Na peça, o Livro não responde nada. Está tão acima, que se afasta de nossas necessidades mais básicas – saber se mortos se enterram de sapatos, por exemplo – e torna-se inacessível e mesmo supérfluo.
Nessa alternância do superior e do inferior hierárquicos, resta ao cômico valorizar o que está por baixo. Em cima, não há nada – apenas cabeças raspadas. É por baixo que se escondem as coisas verdadeiramente importantes. Por baixo mesmo: na exploração do que está abaixo do ventre – vagina, masturbação, pernas, coxas, bundas etc. – e embaixo da roupa – calcinhas, sutiãs, cintas, ligas etc.
Essa inversão topográfica leva a uma inversão de valores, que acaba por revelar o sério, o sagrado, como algo triste e castrador, enquanto o proibido, o profano, leva-nos à realização de nossos desejos e fantasias.
Torna-se aqui interessante a saída encontrada pelo autor para justificar o final, quando as personagens transformam-se em pedras de sal.
É bastante recorrente na mitologia universal que os deuses, sempre que concedem algo a um mortal, imponham a este uma condição. Os deuses, porém, por seu caráter divino e onisciente, sabem de antemão que aquele mortal - de caráter fraco e imperfeito - não será capaz de cumprir a condição proposta. Mesmo assim, impõem-na, no intuito de ludibriar o pactado, criando-lhe a ilusão de que este pode, por suas próprias forças, alcançar o objetivo almejado.
O homem possui o livre-arbítrio de escolher. No entanto, sua liberdade é sempre condicionada pela vontade divina. Assim se dá no episódio de Orfeu, assim se dá no episódio da esposa de Ló, além de ser bastante recorrente em outros episódios míticos. A condição imposta pelo mito vem sempre acompanhada de uma recompensa - se se cumpre o estabelecido - ou de um castigo - se se quebra a aliança.
Na peça As bondosas, a curiosidade, ou pior, a “exprobração” faz com que Astúcia, a mesma que havia plantado a dúvida na cabeça das amigas, vire e perca a liberdade para sempre, como Orfeu e a esposa de Ló. Duvidar de um deus é inconcebível. A desconfiança, porém, sempre fez parte do caráter humano, na tentativa mesmo de igualar-se e, por que não, sobrepujar os deuses. Os que assim agem, sofrem com o castigo da inglória e da penitência.
A peça possui ainda algo em comum com os episódios míticos citados: a condição imposta pelos deuses de não olharem para trás. O ato de olhar para trás suscita diversos significados, embora todos dentro de uma área semântica. Olhar para trás indica desobediência, desconfiança, regresso ao passado, apego ao pecado, arrependimento do ato praticado. Ao escolher por si próprio, afrontando a ordem divina, o homem pratica uma heresia, no seu sentido etimológico de escolha livre entre várias opções. Olhar para trás é cair em tentação, é quebrar o pacto de união do profano com o sagrado.
Ora, mais a peça não trata bem de um olhar para trás canônico. Vem à tona, mais uma vez, o recurso da inversão. As carpideiras estavam fugindo justamente do sagrado em direção ao pecado. Olhar para trás, no caso da peça, indica dúvida com relação à transgressão e não ao arrependimento.
A grande astúcia do autor – com o perdão do trocadilho – foi lembrar-nos de que aquelas mulheres eram seres humanos – dialéticos, sim! – com medos, anseios e, acima de tudo, dúvidas. Todos aqueles valores morais conservadores estavam enraizados em uma vida de prática devota. Apesar da esperança de liberdade e alegria mundanas, restava um resquício de hesitação. Ainda restava uma ligação, um medo, um Deus. Matar a fome por vontade própria parecia não ser tão fácil... Embora livres, as bondosas – em seu claustro – tinham desaprendido a voar.
A impressão que nos dá é a de que, mas do que outro gênero, é através da comédia que se realiza plenamente o Teatro Claustrofóbico: rimos, rimos, rimos... até sufocar!

Washington Hemmes

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