AQUI - ou Fortaleza é a capital do Absurdo

todo prazer é curto. o tempo do prazer não cabe no tempo do pensar. o prazer do pensar não cabe em si, exige tempo. o prazer não tem tempo. quando se pensa em ter tempo para o prazer, o prazer já se foi, pegou carona no tempo para outro tempo-espaço. todo prazer é curto-circuito.


o prazer de ver um ricardo-coração-de-leão e uma vitória-maria-magnificat não cabe numa tela. a projeção cabe num palco de teatro mas o teatro não cabe, extrapola o espaço-tempo de uma projeção. a lição de ionesco é uma lição de autoritarismo, mas também de resistência e perpetração da mudança. é uma lição de reinvenção perpétua, em moto-contínuo. quando o discurso se esvazia, soçobra o radicalismo e as raízes aéreas voam livres pelo espaço em busca de uma fortaleza fluida, líquida, uma fortaleza de ideias e ações que se amoldem mas que também transbordem. uma fortaleza gasosa que evapore névoas de aromas e nos deixe nos narizes inalações de cores.


a morte assídua nos palcos é conforto fálico para a dor. a morte é promíscua e conspurca o prazer dos milagres. a aluna sem luz de ionesco é a soninha sem sonhos de nelson. a caneta, a faca, o corte, a penetração da carne, a retina no texto. o texto se remete e se retém e não tem quem o tire da ponta da língua. sim, pois fortaleza é sim a capital da frança. senão, vejamos nossos córregos higiênicos, nossas aulas em tablets, nossos coletivos impermeáveis, nossos artistas militantes e militares, nossas autocríticas inconfessáveis, nossa estética de um milhão de editais. não fosse em paris, o teatro do absurdo teria se dado em fortaleza. sim, pois só aqui encontramos o vazio como apoio para o futuro. só aqui o estereótipo tem sintomas de criação. só aqui se dá a subversão sutil que não se opõe à destruição.


o prazer de destruir não é fortaleza. esta fortaleza é um forte sem muros nem canhões. aqui só se disparam jardins, rios, praças, manifestações de sim e de não. pois se nós não podemos estar seguros de nada neste mundo, aqui é o único lugar para ficar de pé, correr, nadar, pedalar, aplaudir. é também o único lugar para vaiar, para vilipendiar, para extorquir. aqui é ainda o único lugar para significar. aqui. aqui. aqui.


o prazer de estar aqui, de viver aqui, de conviver com esse agora é desfrutar de uma beleza que só essa geração pode oferecer. só essa geração desnuda nos faz rir de nós mesmos. só essa geração de pau-bunda-peito-boceta de fora pode nos fazer alargar nossa percepção da vida como a grande metáfora teatral (ou seria o contrário!): de shakespeare a beckett, temos sim essa sangria nos olhos e esse riso de canto de boca, esse desespero de entender o que somos nós, o que fazemos de nós, o que queremos para nós. os alunos de beckett não se deixam morrer facilmente. é vida o que pulsa aqui.


nós brasileiros, chilenos, romenos, franceses, ingleses, irlandeses, se não nascemos aqui, fizemos nascer fortaleza, essa cidade napoleônica que se engole numa autofagia crônica mas sempre teima em regurgitar o absurdo da luz-breu que a um só tempo nos cega e ilumina.


a polis é aqui. o cosmos é aqui. o prazer dessa cidade-escambau é o prazer da fruição e da troca: ínfimo e íntimo; ânimo e átimo... aqui.


washington hemmes


(depois de fruir os espetáculos

A Lição - de Ionesco - e 
Um lugar para ficar de pé - de Beckett)


fortaleza, 03 de agosto de 2012

10 comentários:

Danilo Castro disse...

"nós brasileiros, argentinos, romenos, franceses, ingleses, irlandeses, se não nascemos aqui, fizemos nascer fortaleza, essa cidade napoleônica que se engole numa autofagia crônica mas sempre teima em regurgitar o absurdo da luz-breu que a um só tempo nos cega e ilumina". Lindo.

projeto cadaFalso disse...

aaahhh! obrigado, danilo!

em tempo: alterei o "argentinos" para "chilenos", para contemplar o héctor, né! rsrsrs...

valeu, querido!

abçs e compartilhe aí...

projeto cadaFalso disse...

"a derrama verborrágica, quase simultânea, de ionesco e beckett sobre a terra da luz não é coincidência; e a bússola de washington hemmes captou os rumores perceptivos que fluem e afetam todas as coisas. neste estado de entre parênteses onde ‘aqui’ cabem não somente o conjunto do vazio, o absurdo, as frustrações de uma cidade que trava guerra conta si mesma, mas também uma potência criadora, emerge sua poética que nos alenta.

brrrrrrrravo víscero-wosh"

(DIANTON)

projeto cadaFalso disse...

"De fato, Washington, quando vc faz uma leitura do absurdo sobre fortaleza, já é uma dobra do absurdo tal como é visto no teatro de pós-guerra, me remeteu muito à literatura de um Agrippino, de um fluxo imagético, visceral e erótico vertiginoso e delirante, em uma poética móvel, sensual, corporal da escrita. Muito legal."

(Héctor Briones, diretor do espetáculo "Um lugar para ficar de pé" e professor de Teatro da UFC)

projeto cadaFalso disse...

"Quando penso que vou ler uma crítica ou uma crônica, o Hemmes sempre me vem com poesia!"

(Victor Furtado)

projeto cadaFalso disse...

"Hemmes é Hermes e em sua travessia faz da terra da luz uma cidade-luz. E vice-versa. Ele que tem nome de cidade inventa cidades. No texto, cria contextos de múltiplas cidades, de multipliCidades. Nosso Oxto é de todos os lugares e de nenhum. Mesmo que esteja em pé ou ainda que esteja sentado ele é em movimento. Seu lugar? Em trânsito, em transe."

(Ricardo Guilherme)

projeto cadaFalso disse...

Wash, você é realmente antes de tudo ou junto de tudo um poeta. Além disso, conseguir pensar Fortaleza sem a mediocridade de uma insatisfação banal, ou de um elogio gratuito e conectá-la com outras percepções é coisa rara. Coisa rara como o Wash é.

(Maria Vitória)

projeto cadaFalso disse...

Eu li 4 vezes seguidas... Muito foda!

(Jéssica Teixeira, atriz)

projeto cadaFalso disse...

"Texto F-A-B-U-L-O-S-O. Como sempre, aliás" (Diego Landin, ator)

projeto cadaFalso disse...

"Recentemente tive uma outra sensação, vi fortaleza na paris dos imigrantes africanos dos mercados de pulgas, que são o nosso centro, em toda a parte...acho que o absurso está em toda parte..."

(Manoel Moacir, autor do livro Beckett: silêncios)