eu saio da casa mas a casa não sai de mim...

a praça-casa do meio-fio, o brEu do projeto cadaFalso, a planta baixa de eugênia siebra, o jardim das espécies, a casa aberta... ivanov...

depois de invadir as ruas, parece que nos bateu uma nostalgia uterina de eterno retorno: creio que 2012 será o ano da casa. o que acontece nesse hole-sweet-hole que tanto nos incomoda e instiga? que buraco é esse que tentamos tapar? sobre qual chão deslizamos? sob qual céu nos protegemos?

nós não conhecemos nossa cidade, ou melhor, nós não habitamos nossa cidade... será que ao menos habitamos a nós mesmos? talvez cada um habite à sua maneira... mas receio dizer que muitos apenas pisam em rastros deixados por outros e não imprimem suas próprias pegadas...

vi recentemente a pele que habito, do almodóvar. gostei mais do título do que do filme, confesso! (interessante que o termo "life", do anglo-saxão "lif" ou ainda "lib", significa tanto "vida" quanto "corpo". fiquei feliz com a tradução do título do filme em inglês "the skin I live in" - musicalmente, em eco: o corpo que incorporo).

habitar um corpo é incorporá-lo. uma casa é também um corpo... é preciso conviver, viver com ela para habitá-la...

fiquei muito contente em visitar a casa do juvenal galeno depois de uns 10 anos - já li uns poemetos naquele quintal nalgum sarau dos anos 90... fui convidado a ver ivanov, do teatro máquina, mas não me senti em casa... 

o que falta na cena de ivanov é descobrir os segredos da casa, os recônditos dos cantos escuros, a intimidade dos baús e gavetas, a (in-)utilidade dos móveis, a espacialização dos cômodos, a ameaça, a curiosidade e o escape das portas e janelas, o aparente conforto e sensação de segurança, o estar à vontade e a noção de lar, a memória das paredes (a expressão subir pelas paredes em alemão é: "aus der Haut fähren". Haut significa pele, membrana e também parede... o corpo da casa é vivo: as paredes têm ouvidos etc.)

mas em uma casa-sem-órgãos, interessa deslocar e ressignificar os usos convencionais de cada cômodo. é possível comer no jardim e plantar uma flor na cozinha; ler no quarto e foder na biblioteca, enfim... o espaço privado da casa permite uma liberdade de desconstrução das aparências públicas... 

e não se pode relegar o público a um plano secundário: é também preciso convidar o público a ser partícipe dessa casa... evitar transformar a casa em vários mini-palcos... como anfitrião, o grupo precisa saber receber, recepcionar, oferecer algo para degustarmos... o público pode ser os olhos e os ouvidos da casa: não pode ser esquecido, deixado num canto com um objeto inanimado e decorativo... o público pode se espalhar como poeira ao vento, como a fumaça do charuto do bórkin... sua presença - revelada! - pode interferir nas ações das personagens: às vezes ameaça; às vezes cumplicidade...

quando se desloca uma cena para um outro espaço, tudo muda... não é mais a mesma cena... o espaço precisa ser significativo; é preciso partir dele... é preciso correr riscos e riscar o conforto do realismo... não é a casa de ivanov,  nunca será, mas essa casa pode revelar
memórias futuras, potencialidades e latências de cada personagem: é preciso habitá-la... cada personagem pode configurar um cômodo e revelar um confronto territorial a partir dele... a casa como espaço agonístico (âgon, debate, disputa, polêmica)...

é preciso criar um habitus: concicliar a oposição entre a aparente realidade exterior e as realidades individuais que seja capaz de expressar o diálogo, a troca constante e recíproca entre o mundo objetivo e o mundo subjetivo das individualidades... (ok, devo ter lido bourdieu algum dia desses...)

gosto muito do traçado coreográfico de algumas cenas mas não sinto os atores confortáveis com isso... eles precisam incorporar essa dança... ouvir a música e o silêncio e deixar o corpo deslizar...

as luzes excessivas também incomodam! em ivanov, quanto menos, melhor... menos volume de voz, menos gestos e deslocamentos... a beleza de ivanov está na denegação, na falta de atitude, na apatia da personagem, uma espécie de bartleby do teatro (I prefer not...).

gosto do risco e da experimentação: não se faz arte com certezas! o importante é ficar maquinando... sempre...

curiosidade interessantíssima: o juvenal galeno circulou cego durante uns trinta anos por aqueles cômodos!!! e seus poemas eram ditados para sua filha... apropriar-se do discurso alheio e ainda assim manter a sua própria voz: será arte?!

eu saio da casa mas a casa não sai de mim...

7 comentários:

Maurileni Moreira (Maura) disse...

Engraçado, quando pensei em ir ver IVANOV na casa Juvenal Galeno pensei em justamente como é que o grupo iria envolver os seus convidados, porque sim, de mero públicos todas as pessoas que adentrariam naquele espaço teriam que se tornar no mínimo 'visitas'. Quis muito ter ido, infelizmente o dinheiro me toma por falta. Assisti no Sesc Iracema, e me lembro plenamente do distanciamento da caixa cênica para os atores e os atrizes. Uma estrutura de espaços vazados dava a entender que existiam olhos em todo o espaço cênico, chegávamos a ter a olhar pelas venezianas, a 'curiar' as discussões do vizinho... IVANOV é um trabalho que me tocou muito, mas adoraria ver em que IVANOV se transformou a habitar o espaça da casa. Será que eu me sentiria querendo voltar pra casa se nem ao menos cheguei na casa? - Fazendo alusão a fala da América...Tenho mais o que falar, IVANOV é um trabalho que mexe as vísceras, detona sensações de 'impotência'... Já sinto por aqui a mesma sensação de casa desabitada.

Tentarei ver.

projeto cadaFalso disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
projeto cadaFalso disse...

se o espetáculo nos suscitou tantas sensações e questionamentos é porque é realmente muito bom!

sugiro que o veja novamente! afinal, esse texto foi escrito no começo da temporada...

bjs.

projeto cadaFalso disse...

Comentários de Eugênia Siebra:

Extensões do corpo aranham-se nas paredes/memória para ser. Para ser casa-corpo há de lambuzar-se no que do dentro habita...para além da pele... com veias, sangue e excrementos. Pulsa corpo-casa também do dejeto esquecido de ser.

Crônica certeira não pela casa-Ivanov porque ainda não a vi, mas pela interação necessária, "caseira", do corpocasacorpo em suas reentrâncias de cômodos - partícipes que expectam e reagem. Casa-corpo que não fica, senão saindo tenso, partido e aberto nos outros partilhados.

Sua literatura me anima e me salva para o mar rasteiro da rua... assim como planta baixa. Troco com os outros a pele que é teto sem paredes no corpo-cidade.

Unknown disse...

não assisti o ivanov por motivos que posso pontuar:
nas duas temporadas estava em cartaz no mesmo horario, adoraria ter visto, porém sobre ivanov não posso argumentar no seu texto.
posso falar 'da parte que me cabe', porque você cita o casa aberta e fala da sua crença de ser esse o ano de 2012 o ano da casa.
estamos vivendo em tempos dificeis tanto no âmbito estadual como no municipal e isso implica nos equipamentos culturais da cidade, e como somos seres de uma terra absolutamente inventiva como Brasil, afirmo que no caso da casa aberta a vontade de existir de forma criativa e poder partilhar a invenção dos criadores que estavam habitando a casa na época veio como forma de burlar as fragilidades dos equipamentos culturais. digo fragilidade porque entendo como fragil um lugar que tem como gestor (posso citar o dragão do mar) uma pessoa que não entende absolutamente NADA do que precisa aquele que faz a cultura de tal lugar.
para se fazer existir.
não entenda também que não precisamos desses equipamentos, precisamos e é direito e dever de todo artista habitar esses lugares, mas é preciso também a invenção de novos de acordo com o andamento das necessidades de cada tempo.
encontramos nesse tempo a vontade de partilhar e inventar encontros onde fosse politicamente potente assim como potente na relação de afeto, por isso escolhemos a casa, por isso é uma casa aberta, por isso faremos outras e outras e outras.
A.

Danilo Castro disse...

Que legal é disscutir percepções. O tempo vai passando a gente vai descobrindo coisas novas numa obra. Creio que o Máquina está pisando num solo interessantíssimo para se pesquisar e a tendência é descobrir preciosidades com o tempo. No palco, somos espiões, na casa, "fantasmas onipresentes", como citei no meu texto, mas, como você falou, por que sermos fantasmas? Que tal se fôssemos convidados da festa? Ou funcionários de Ivanov? Ou empregados? Enfim... É um novo caminho a se descobrir. Vamos discutindo.

projeto cadaFalso disse...

aspásia, querida!

lindos seus comentários sobre a atitude política de ocupação dos espaços: temos mesmo que ocupar o máximo de espaços possíveis... e habitá-los (em todos os sentidos do termo!), mas penso também que devemos avançar um pouco mais (para alguns, isso é retrocesso!) e procurar investigar esses espaços, suas potencialidades poéticas e cênicas, suas memórias e sua cenografia e seus constrangimentos estéticos... é por aí que vejo valer à pena a investigação estética em torno dos espaços, sejam públicos sejam privados...

e convido a todos a darmos prosseguimento a esse papo investigativo e trocarmos nossas experiências afetivas, estéticas e ideológicas em torno do espaço CASA (o que seria o dentro se mal distingo o fora? ou mesmo o inverso...)