Made in Love (ou Tio, mas por que é que elas não saem do canto?)

O assistencialismo está generalizado. Dos programas governamentais ao bom mocismo das ONG’s, todo mundo quer salvar a Pátria... mas para salvar a própria pele! Dia desses, vi uma luz no fim do túnel...

Há alguns dias, um grupo de meninas em situação de rua foi ver o espetáculo Meire Love, do Grupo Bagaceira, com texto de Suzy Élida. No meio da peça, uma dessas calungas de louça trincada perguntou ao educador que as guiava: “Tio, mas por que é que elas não saem do canto?” Não importa aqui a resposta do Tio, que não esperava por essa agulhada aparentemente inocente. Eu teria dito – com veneno na boca e lágrimas nos olhos: “Se avançarem mais, elas vão desabar sobre a gente!”.

Eu fico possesso! Como um espetáculo desses não é visto em todo o Brasil, em todo o mundo! Por que cargas d’água o teatro cearense ainda insiste em ficar confinado entre as quatro paredes de uma sala escura, burguesa, compartimentada e careta? Tenho uma forte impressão de que essas angústias serão bem resolvidas nos próximos anos pelos próprios artistas, quando se derem conta de que o teatro é anterior ao Teatro. Este, com letra maiúscula, imponente em sua arquitetura art nouveau elitista, em sua estrutura de Glasgow que mais parece uma cadeia cênica; este que subdivide as pessoas em andares hierárquicos, que abre as portas uma vez por mês por desencargo de consciência; este Teatro já era! Já se fez cartão-postal oficioso de uma cidade oficiosa! Já se fez macumba pra turista!

Há tempos as artes plásticas abandonaram o claustro limitador da moldura e as artes visuais invadem os espaços e o cotidiano da cidade! A literatura e a música não têm mais suporte fixo e viajam virtualmente, por vezes, renegando a própria linguagem. O teatro precisa explodir suas paredes concretas e simbólicas! Como fazem sabiamente as meires-calunga ao se entregarem à liberdade e aos riscos do mar!

O teatro de Meire Love está na poesia cênica do corpo radical. O minimalismo dos movimentos leva os atores a uma atomização de energia cinética que incomoda a menina-calunga, costumada a correr mundo, a despedaçar-se em sinais e esquinas. As imagens explodem na cabeça do espectador e, aí sim, o teatro acontece – não mais no sentido grego, cuja cultura supostamente democrática enraizou uma perversidade excessivamente racionalista no espírito ocidental, nem mesmo no sentido italiano, cujo desenho cênico instaurou uma cisão ilusionista e intransponível entre o público e a platéia... O teatro de Meire Love é um teatro de atores, jovens, ainda imaturos, mas já corajosos e revolucionários na sua suposta despretensão.

Com Meire Love, o Grupo Bagaceira dá uma guinada simbólica que os afasta do fastio niilista dos Lesados para uma fome desesperada de viver. Os atores-calunga se estilhaçam em mil imagens sem sair do lugar (ou do canto, no nosso linguajar cearense). As personagens-calunga, feito moiras descamisadas, vão fiando, tecendo e cortando o seu próprio cordão umbilical, num ciclo aparentemente sem solução, não fosse a intervenção demiúrgica de Suzy Élida e Yuri Yamamoto, que possibilita uma linha tangencial lúdica e iconoclasta, de reciclagem da mesmice e potencialização de linguagens.

No final, as meires-calunga surpreendem os apologistas do caos por quebrarem a estagnação e continuarem brincando de vida, mesmo diante das adversidades. Mais força teria a cena se os atores realmente invadissem a platéia, “saíssem do canto”, “desabassem sobre a gente”, explodindo seus sacos em nossas caras bem comportadas!

(Ouço gargalhadas da menina-calunga...)

Os sacos plásticos cheios de ar ganham vida ao serem soprados: leveza, alegria, ludicidade, mas também medo, ressentimento, irascividade. Os sacos são as próprias meninas, películas finas e frágeis, cheias de sentimento, loucas para levitar, mas puxadas pela gravidade do mundo-chão, densidade que as faz por vezes se comportarem com o peso da cena na qual brincam de boneca com o corpo vivo de uma das meires e com o corpo-cadáver da Meire Love. Aqui elas só reproduzem entre si o rancor e o desespero de uma sociedade que não sabe o que fazer com os monstros que criou e os confina em febens, funcis, abrigos zôo-lógicos, jaulas ideológicas...
           
Orides Fontela diria que “quebrar o brinquedo ainda é mais brincar”. Quando os artistas do teatro cearense perceberem como é divertido desmantelar o brinquedo e ressignificar suas partes, remontando-as em possibilidades infinitas, jamais imaginadas, surgidas na própria possibilidade da quebra, daí sim, seremos grandes brincantes nesse jogo da vidarte.

(Ouço as meninas-calunga gritarem: “Palco nu, pau no cu! Eu num tenho cupadá!”... )

Essas calungas são feitas de amor!

Para o Tio Sahm

e também para

Suzy Élida
e o Grupo Bagaceira

Com admiração e afeto,
Washington Hemmes
(projeto cadaFalso)

For, 14-18/12/2007.

2 comentários:

Rogmesquita disse...

Adoro esse texto querido! Mas ele já está bem dezatualizado. Meire Love ja se apresentou em Juazeiro do Norte, Crato, Sousa (PB), Recife (PE), Salvador(BA), Vitória (ES), Belo Horizonte (MG), no estado de São Paulo nas cidades: Araçatuba, Araraquara, Campinas, São José do Rio Preto, Birigui, Ribeirão Preto, Mauá, Rio Claro, Marilia,Osasco, São Bernardo do Campo, Santo Andre, Indaiatuba, Piracicaba e na capital, São Paulo!!!! Espero que em breve, vc possa ver de novo e escrever algo sobre novas impressões que possam surgir! Um abraço!

projeto cadaFalso disse...

valha, rogério! só agora li teu comentário!

este texto, como toda crônica, é o retrato de uma época e naum pode ser modificado. na verdade, ele está cada vez mais atual, justamente por refletir (com bastante antecedência!) sobre mudanças importantes que iriam acontecer (e estão acontecedno!) na prática artística cearense... bjs.