posfácio desinteressadíssimo

Não é fácil escrever um posfácio. O que dizer depois de tudo? Depois de sentidos dispersos e prazeres desencontrados? O leitor sagaz saberá por certo ressabiar-se do que vem após, do que vem aposto. Ora, quem tem o direito de retificar a escritura? E quem terá a ousadia de constranger a leitura? Entre o autor, o texto e o leitor, o comentador faz-se cego em tiroteio, alvo fácil de epifanias e despautérios. Pensei mesmo em desistir do convite. Mas perdi a coragem e comecei a escrever. E agora, juro!, vou tentar ser inteiro até a última linha.

Começo por dizer que o conto pode salvar! Sim, o conto pode salvar uma vida! Mesmo que por quinze minutos. Quando pensei em todas as possibilidades de escrita, só encontrei a vida.

A escrita que não tem dor de cabeça, que não boceja entediada, que não pulsa pau-pulso-coração-mente mente; a escrita que não tem ponte com o vivido morre. Juro!, pensei em todas as possibilidades do vivido e só encontrei Rafa querendo sair, querendo ser Ratts, querendo serrar o peso da pedra, querendo se quebrar em palavras.

E é isso o que se dá! E é esse o lance da escritura. Parece que não se mostra pois só o que mostra é vida. A vida pode não ser lá grande merda; pode ser só meia-merda até, mas tem um EU nessa merda toda. Um EU querendo se eternizar, não na vida-vaga-volátil, mas na possibilidade da escritura, registro de existência de vida. Um EU-plural-múltiplo-volúvel. Um EU-sem-volante:

1. EU corro pela chuva porque a porta está aberta e, caso não estivesse, EU a atravessaria com silêncio e tudo só para ouvir a música da água em meu corpo;
2. EU dou a bunda por qualquer motivo e sei que o prazer está no desconforto;
3. EU invoco a casa como parte do meu corpo, pois anseio por janelas;
4. EU me ofereço em sacrifício à salvação até foder a alma;
5. Eu quis soletrar e soletrar até chegar a uma palavra que depois não se diz mais, até que venha, não a vontade, mas a precisão de soletrar novamente;
6. EU, por fim, ensaio um EU fragmentado, um videoclipe depressivo de música da onda;
7. EU achava que o EU tinha um fim quando me vi sem cura, sem ponto final

Tentei não relacionar o autor às personagens quando me traí por omissão. O EU se refugia nas personagens que se refugiam no EU que se refugia no refluxo perpétuo de autofagia explícita. O EU regurgita migalhas de personagens que vomitam sobejos do EU em restos de poeira e mofo. O EU sentimentaliza as personagens que animalizam o EU que bestializa o lirismo em néon e formicida. Um EU suicida: a morte do EU pela expectativa da ressurreição. O novo testamento anuncia um novo corpo: o EU está nu diante de um velho EU. Só interessa a salvação do corpo. Até foder a alma em obsessões recorrentes: relações egocêntricas: ou o EU se frustra por não ter beleza ou por não ser reconhecido ou por não possuir ou por estar só ou por estar acompanhado: permanente insatisfação do EU; solidão inexorável que o leva a dialogar com o inumano, ou melhor, a humanizar todas as coisas ao redor: bichos, cômodos, lugares, objetos, sentimentos, partes do corpo. O EU nunca sai de si. Em seu percurso ego-centrípeto, acaba por encontrar a si mesmo: espelho esfacelado de eus.

O EU se sente perdido num mundo grotesco de anões, gordos, macacos ruivos, perversões, doenças, morte e anseia por “ser salvo”: pelo amor, pelo sexo, pelas drogas, pela diversão, pela literatura. O EU se desdobra em si mesmo e cria um altereu messiânico para livrá-lo de todo o mal: a necessidade obsessiva e incontrolável de escrever: a escrita, que era uma coisa só de diversão, servia-lhe agora como os remédios estocados no armário.

O EU se digladia consigo mesmo. Sabe que o autor não tem culpa mas se sente culpado. Sua via-crúcis do corpo perpassa a experiência táctil da escrita. Em sua aparente despretensão, o EU, na verdade, vulgariza a vida no que ela tem de mais viva, a banalidade: nada de metafísica ou floreios literários, a vida deve ser escrita com o desejo cotidiano, digo, a escrita deve ser vivida com a televisão ligada, um copo d’água para as drogas (diversas e divertidas!) e uma vontade desesperada de vomitar, expelir o que há de mais interior.

O lance é blogar a escritura. Transformá-la em diário íntimo, ou melhor, em intimidade diária. Revelá-la em broadcast. Gritar ao mundo: o EU existe! Pode não ser lá grande merda, mas – eu me repito muito, não?! – tem um EU nessa merda toda. O EU é escatológico, mas não tem fim. Tem a escrita como fim. Escritura controle-remoto, zapeada por um certo fastio de profundidade e uma fome de abarcar o mundo com as pernas, de preferência pelo ânus, que o autor chamaria de cu e pronto. Escritura-videoclipe, esfarelada, sem preocupações com o que há por vir. Sim, porque não há nada, nada de amor, nada de alma se dilatando. Não há nada, nenhuma metáfora melodramática no devir, apenas uma reflexão desalmada, sem olhos, pupilas e mãos desmanchando, pegando fogo.

O eu que aqui escreve sabe da difícil tarefa de ser pós e aposta nesse lance de metalinguagem. Afinal, eu sei que todas as coisas já decidiram ir ou despencar e só ficou essa vontade aqui calada: é só uma questão de roubar dos outros alguma coisa.

E se não consegui ser inteiro até a última linha, sinto-me salvo. Pelo menos aprendi a me despedir com uma mentira da semana passada que não lembro o nome. Sem cura. Sem ponto final

(Esse texto foi escrito como posfácio ao livro de contos "Sweet Dreams", de Jr. Ratts - Editora 7 Letras, 2009).

2 comentários:

Sandra disse...

Pulsante e encorajador. Escrever um posfácio não é nada fácil ao contrário é deveras como o autor deste posfácio acima nos diz: autor d posfácio é alvo fácil para despautérios. Muita responsabilidade "pincelar" sobre toda uma obra, qto à ti fostes feliz neste posfácio meu caro. Bacana mesmo, meus cumprimentos.

projeto cadaFalso disse...

obrigado, Sandra! grande abraço!