Intervenção urbana: Hilde ou De como o corpo é pouco para nossa fome


Sahmaroni Rodrigues

Mostrar fragmentos de corpos mortos numa praça e servi-los a abutres e urubus. O leão é aquilo que come, dizia Valéry. Minha arte é um exercício ético-religioso, dizia Lygia Clark. Minha arte é necessidade do de-dentro, digo eu. Hilde é a porca que vai morar com um matemático e os dois vivem felizes. Porca e louco se entendem, diz Hilda Hilst. Minha intervenção nasceu de intervenções em mim. Estava em casa com a família e o amor reunidos (às vezes milagres acontecem). Era um almoço dominical. Minha mãe fazia frango para os que não comem carne. Assim ela disse. Aos outros, porco. Poucos corpos porcos. Essências de nós. Em minha potência, enchi o prato de carne de porco e comecei a comê-la lambendo os lábios... Na TV, alguém disse que o porco é fisiologicamente o mais humano dos humanos. Estremeci e senti que me devorava. Que comia meu braço fatiado. Que disfarçavam minha carne com temperos e me serviam a mim. Estremeci de nojo de mim: urubípede que devora cadáveres de outros que como eu sou: carne. Um pastoso vermelho que corre por todos os espaços. Meus. Imaginei então se outros como eu percebem que os pedaços enfeitiçados que por aí devoram são entes como eu que gritam, choram, medram e são incompreendidos. Em meu entendimento cego, entendi que poderia intervir na praça que vende cadáveres para serem devorados. Se sou o que como, meu corpo é corpus? Em um sábado, fui à feira e vi galinhas confinadas em uma pequena gaiola. Vi pessoas escolhendo-as como coisas que não têm sangue e vísceras e alguns sentimentos de galinhas, como bem salientou a filósofa mística Clarice Lispector. Alguém a escolhe por alguns papéis sem valor – assim como a vida – e leva-a para uma senhora matar, jogar em água quente e prepará-la para ser levada para casa onde será devorada. Não mais a galinha. O cadáver da galinha. Captei toda a cena. Captei carcaças de boi. Cadáveres de peixes e de outras galinhas (relembrei que já me chamaram assim muitas vezes). Fiz notas de dinheiro tão sem valor quanto o outro, agora mais, com inscrições poéticas de textos meus. Comprei uma porquinha para encher-lhe de notas e ser feita em pedaços assim como os que se devoram por aí. Os homens. Para que não entendessem que sou panfletário, emendei o processo de engordar o porco com as notas, pus o final do clip bad romance de Lady Gaga e emendei as imagens de matança de animais captadas e retiradas do youtube – tal qual um ready-made na era digital -  sem nenhuma ironia, pus como fundo musical – além da morte de muitos – a canção o homem deu nome a todos animais, versão de Zé Ramalho para Bob Dylan, interpretada por Adriana Calcanhotto: no princípio eram imagens, e o tempo fez-se vídeo. Na feira, enquanto este vídeo passava ininterruptamente, distribuí churrasquinhos suculentos de cadáveres e, em troca, pedi que as pessoas se sentassem confortavelmente assistindo ao vídeo e dividissem dentada a dentada o naco de corpo oferecido para comunhão.  Se é para ser morto, que pelo menos seja como o cristo, para o bem de todos. E que não fiquem cadáveres estocados em praças e supermercados como se fosse um IML, onde apenas pessoas autorizadas podem tocar nas carnes sem vida e prontas para apodrecer assim que saem do ar-refrigerado. Havia sempre caras de nojo nas pessoas que comiam. Pude fazer gravações de algumas falas. Depoimentos. Como gesto assassino final, quebrei a porquinha que eu engordara com notas e... muitos urubus e abutres e outros bichos-humanos (ecos de Bandeira) pularam e disputaram entre si as notas-dinheiro-papel e sorriam perguntando: quem foi o doido que jogou dinheiro na rua? E agora não era mais performer. Era eu de novo. Antes também.

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